O Mito do Brasil Cafeeiro: somos potência ou peão?
Enquanto colhemos grãos, a Alemanha colhe EUROS!
O Mito do Brasil Cafeeiro: Somos Potência ou Peão?
Olá!
Você já se perguntou por que, apesar de ser o maior produtor mundial de café, o Brasil fica com apenas uma fração mínima do lucro dessa indústria bilionária?
Esta é a história de um grande paradoxo econômico: enquanto colhemos grãos, países como a Alemanha colhem euros. Os números são estarrecedores e revelam uma matemática perversa que transforma nosso país em mero fornecedor de matéria-prima barata para indústrias estrangeiras. Enquanto nos orgulhamos do título de "potência cafeeira", a realidade mostra que somos apenas peões em um tabuleiro global muito mais complexo e lucrativo.
Hoje, vou desvendar os mecanismos dessa dinâmica desigual e mostrar como o mito do "Brasil cafeeiro" esconde uma realidade econômica que precisamos urgentemente transformar.
Vamos mergulhar nessa análise.
A cadeia do café revela uma desigualdade brutal.

Os números expostos pelo Financial Times em 2019 contam uma história alarmante sobre a distribuição de valor na cadeia global do café:
Produtores brasileiros vendem o quilo do café por aproximadamente R$6,60. Esse mesmo café, após processado na Europa, é comercializado no varejo por cerca de R$400/kg. Isso representa um markup extraordinário de 70 vezes sobre o preço original!
Para contextualizar essa disparidade: um saco de café de 60kg, comercializado por cerca de R$400 no Brasil, gera produtos finais que podem valer mais de R$24.000 no mercado internacional. Essa discrepância monumental não é apenas uma curiosidade estatística — é o reflexo de um sistema econômico que mantém países produtores como o Brasil na base da pirâmide de valor.
E o mais revelador: enquanto os produtores recebem migalhas, os torradores ficam com aproximadamente 80% do valor gerado em toda a cadeia. Um grupo seleto de empresas — as top 10 do setor — controla 35% do mercado mundial de café processado. E o Brasil? Está praticamente ausente nesse segmento mais lucrativo!
Por que isso acontece? A armadilha das commodities.
Essa situação não é fruto do acaso, mas resultado de escolhas econômicas que nos mantêm presos à chamada "armadilha das commodities".
O Brasil se especializou em produzir grandes volumes de commodities com características muito específicas:
Preços definidos em bolsas internacionais, sobre os quais temos pouco controle
Produto homogêneo, facilmente substituível
Baixa diferenciação que nos coloca em competição direta com outros produtores
Pouco investimento em P&D, inovação e desenvolvimento de marcas
Essa especialização nos torna extremamente eficientes na produção, mas vulneráveis e dependentes. Ficamos à mercê de preços definidos externamente, enquanto outros países capturam o valor através do processamento, branding e distribuição.
O resultado é um ciclo vicioso que pode ser resumido em quatro passos devastadores:
Brasil vende grão barato
Europa processa e agrega valor
Brasil reimporta produto final
Pagamos 70x mais pelo nosso próprio café!
Esta não é apenas uma questão econômica, mas um problema de desenvolvimento nacional. Quando exportamos matéria-prima e importamos produtos acabados, estamos essencialmente financiando a industrialização e a criação de empregos qualificados em outros países.
O caso Dolce Gusto: um exemplo gritante.

Para ilustrar essa dinâmica perversa, basta olharmos para o caso concreto da Dolce Gusto na Alemanha:
A empresa instalou uma nova fábrica que oferece:
350 empregos bem pagos
Localização estratégica no coração da Europa
Alta tecnologia e processos industriais avançados
Forte agregação de valor à matéria-prima
Enquanto isso, o Brasil fornece o insumo básico: um saco de café de 60kg, vendido por aproximadamente R$400 (R$6,60/kg), que será transformado em cápsulas comercializadas no varejo por R$400/kg.
A matemática é implacável: enquanto geramos alguns empregos rurais de baixa remuneração, a Alemanha cria centenas de postos de trabalho qualificados, bem remunerados e com alta produtividade. Enquanto exportamos um produto primário sujeito a oscilações de preço e condições climáticas, eles exportam tecnologia, design e experiência de consumo.
E o mais irônico: muitas vezes importamos de volta, a preços premium, produtos feitos com nosso próprio café.
Essa dinâmica da cadeia global de valor, onde países em desenvolvimento ficam presos nas etapas menos rentáveis, enquanto nações desenvolvidas dominam os elos mais lucrativos, é um tema que exploramos detalhadamente em nosso curso sobre economia para entender o Brasil.
Brasil vs. Starbucks: quem é realmente a potência?
A comparação entre o Brasil e uma única empresa de café revela a magnitude desse desequilíbrio:
Faturamento da Starbucks: US$ 36 bilhões/ano (dado de 2023)
Produção brasileira de café em grão: 50,4 milhões de sacas e faturamento de US$ 12,5 bilhões/ano (dado de 2024)
Isso mesmo: uma única rede de cafeterias gera quase três vezes mais receita do que todo o setor cafeeiro do maior produtor mundial! E não é por acaso: a Starbucks não vende apenas café, mas experiências, ambientes, status e uma marca global.
Esta comparação brutal nos força a confrontar uma verdade incômoda: somos gigantes na produção, mas pequenos no valor agregado. Produzimos em quantidade, mas não controlamos as etapas que realmente geram riqueza, empregos qualificados e desenvolvimento tecnológico.
A transformação necessária: de peão a player estratégico.

O Brasil não está condenado a permanecer eternamente nessa posição desfavorável. Podemos e devemos transformar nossa relação com o café e outras commodities.
Outros países produtores já começaram essa jornada. A Colômbia, por exemplo, investiu pesadamente na diferenciação do seu café, criando denominações de origem, promovendo cafés especiais e desenvolvendo marcas nacionais com reconhecimento global. O resultado? Seus produtores conseguem preços significativamente melhores do que os brasileiros, mesmo com volume menor.
Para quebrar esse ciclo vicioso, precisamos de uma estratégia nacional ambiciosa que inclua:
Investimento em pesquisa e desenvolvimento para criar produtos diferenciados
Fomento à industrialização local e ao processamento avançado
Desenvolvimento de marcas brasileiras fortes com presença internacional
Criação de certificações, denominações de origem e padrões de qualidade reconhecíveis
Apoio a startups e empreendedores que possam inovar na cadeia do café
Isso não significa abandonar nossa força na produção primária, mas complementá-la com atividades de maior valor agregado. Precisamos estar presentes em todos os elos da cadeia, especialmente naqueles que capturam mais valor.
Até quando seremos apenas o celeiro do mundo?
Esta é a pergunta que deve nos inquietar e mobilizar. A verdadeira riqueza das nações modernas não está na terra ou nos recursos naturais, mas na capacidade de agregar valor, inovar e controlar cadeias produtivas estratégicas.
Países que se desenvolveram nas últimas décadas entenderam essa lição fundamental. Coreia do Sul, Taiwan e China não se contentaram em ser fornecedores de matérias-primas ou montadores de baixo custo — eles ascenderam na cadeia de valor global até se tornarem líderes em tecnologia e inovação.
O caso do café brasileiro é emblemático de um modelo econômico que nos mantém presos à "armadilha das commodities": exportamos natureza e importamos conhecimento, num ciclo que perpetua dependência e subdesenvolvimento.
Curiosamente, enquanto o Brasil na década de 1980 tinha um parque industrial mais diversificado que a Coreia do Sul, hoje nos encontramos exportando principalmente commodities enquanto a Coreia produz alguns dos bens mais sofisticados do mundo.
Este paradoxo de como uma economia com enormes vantagens iniciais perdeu dinamismo enquanto outras avançaram rapidamente desafia as explicações econômicas convencionais e revela falhas estruturais profundas em nosso modelo de desenvolvimento que vão muito além das políticas de curto prazo.
Quebrar esse ciclo exigirá não apenas políticas públicas coerentes, mas uma mudança de mentalidade. Precisamos superar o orgulho superficial de ser o "país do café" para ambicionar ser protagonistas em toda a cadeia de valor desse produto.
Porque no final, a questão fundamental permanece: queremos ser potência ou peão no tabuleiro global do café?
O mito do Brasil cafeeiro precisa dar lugar a uma nova narrativa — uma em que não apenas colhemos grãos, mas também colhemos o valor e a inovação que podem transformar nossa economia e sociedade.
Um grande abraço!
Paulo Gala
Graduado em Economia pela FEA-USP | Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo | Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY | Autor com +10,000 cópias de livros vendidas | Geriu carteiras de +R$ 3,000,000,000 | Professor na FGV/SP há 20 anos.
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A elite do atraso NÃO quer fazer nada mais que não seja uma atividade extrativista e barata em know-how e mão de obra. Como transformar isso no tão aclamado progresso se os meios de produção estão aprisionados por essa elite?
Primeiro, agradeço profundamente pelos dados apresentados e pela oportunidade do diálogo, que amplia minha visão, para entender o contexto social em que vivemos. Fundamental para lidar com temas da Saúde Existencial, área em que atuo e sobre a qual venho publicando aqui no Substack. Neste sentido proponho que também voltemos o olhar para a Economia Solidária — até onde entendo, ainda pouco presente nos debates econômicos.
Gostaria de também de contribuir com algumas reflexões, destacando os trechos que mais me chamaram a atenção.
É apenas um exercício de reflexão e, por favor, me corrijam se eu estiver ignorando algo.
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" Este paradoxo de como uma economia com enormes vantagens iniciais perdeu dinamismo enquanto outras avançaram rapidamente desafia as explicações econômicas convencionais e revela falhas estruturais profundas em nosso modelo de desenvolvimento que vão muito além das políticas de curto prazo. "
Não vejo um paradoxo.
Vejo uma estratégia que funciona muito bem desde o Brasil Colônia.
As pessoas que controlam essas commodities cafeeiras vivem de maneira extremamente confortável e jamais demonstraram qualquer interesse em mudar seu modus operandi.
Isso fica nítido na polarização dos partidos políticos. O discurso de melhores condições de vida para os trabalhadores, distribuição de renda dos valores arrecadados pelos lucros da produção, investimento em tecnologia por meio da construção de polos educacionais técnicos de desenvolvimento, e todas as condições que poderiam mudar esse quadro apresentado nesta brilhante publicação não é tema de interesse dos proprietários das commodities — tanto é um fato que seus votos e apoio político, inclusive com muito dinheiro e poderosos lobbies dentro da política, estão direcionados àqueles que defendem a manutenção do modelo concentrador de riqueza.
Esse alinhamento ficou particularmente evidente no governo passado, cuja agenda foi marcada pelo desmonte de políticas públicas, pela flexibilização ambiental e pelo enfraquecimento de instituições em benefício direto do agronegócio exportador — com custos sociais profundos, como o aumento da fome, a precarização do trabalho e a destruição de mecanismos de proteção socioambiental, em articulação com outros setores que compartilham a mesma lógica predatória, como os garimpos ilegais e madeireiras. ( Um quadro amplamente documentado.)
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" Porque no final, a questão fundamental permanece: queremos ser potência ou peão no tabuleiro global do café? "
Em relação a essa questão, entendo que, nesse tabuleiro, seremos sempre os peões — independentemente do lado em que estivermos jogando. Somos apenas peças de troca, utilizadas para que as figuras mais altas da hierarquia avancem algumas casas. Essa é a nossa posição no jogo. Sob essa perspectiva, não se trata de mudar as regras, mas de mudar o próprio jogo, rompendo com as estruturas do capitalismo — onde ocupamos posições rigidamente definidas, com raras exceções, usadas como retorica que apenas reforçam a ilusão da ascensão e da mobilidade socioeconômica.
Esse jogo não foi feito para permitir mudanças reais de posição: por regra, o peão não se tornará um cavalo, uma torre ou um bispo — assim como essas peças jamais se tornarão o rei ou a rainha. É uma lógica rígida, quase como um sistema de castas, disfarçado sob a aparência de mérito e mobilidade embaladas pela indústria cultural que distorce os valores e a história.
Para isso, cito a falácia do PIB: onde vemos o brasileiro que não pertence à "Elite do Atraso" (como Mara lembrou na resposta acima — ver Jessé Souza) comemorando o crescimento de quem o explora e, enquanto é explorado, admira a competência do explorador.
Semelhantes aos que comemoram a vitória de um time de futebol, gritando com suas bandeiras em mãos: “Ganhamos a taça!”, apesar de nunca terem entrado em campo e de ser um jogo que não altera em nada suas vidas, essas pessoas adoram ídolos inventados que, em troca, consomem sua atenção, afrouxam sua cognição e moldam seus valores.
Com isso, não estou dizendo que o PIB não seja importante, mas que estamos desviando o foco de nossas necessidades enquanto olhamos para os números e esquecemos de nós — como sociedade, em comum, como humanidade.
Por exemplo: conforme os números crescem e comemoramos o aumento do PIB diante da tela da Rede Globo, conseguimos identificar uma correlação causal com melhorias na qualidade da escola pública? Com o aumento do salário dos professores?
Ou, ao notar o crescimento do PIB, o posto de saúde do seu bairro recebe uma ambulância para emergências?
Com o aumento do PIB, aquela praça da periferia — cheia de ratos e acumulando lixo — poderia se transformar em um agradável parque educacional, onde jovens, crianças, adultos e idosos pudessem se divertir e interagir com a cultura — como ocorre em diversas praças públicas de regiões de classe média alta?
Ou faz diferença apenas para aquelas pessoas que pousam com seus helicópteros no topo dos prédios, enquanto simples mortais se silenciam diante do barulho ensurdecedor e sacam seus telefones, admirados, para filmar o evento, sem se questionar o custo social ($) desse conforto a anos-luz de suas realidades?
Desse modo, gostaria de contribuir para ampliar a visão em relação à corrida pelo “crescimento econômico” no tabuleiro do capitalismo, principalmente dentro de um país de mentalidade colonialista. Precisamos, assim, acima de tudo, mudar a mentalidade do brasileiro, pois é isso que está nos enlouquecendo enquanto lidamos com a economia, entendida como a organização da nossa “grande casa” — a economia social.
(Do grego: oikos = lar; nomos = gestão)
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" E o mais irônico: muitas vezes importamos de volta, a preços premium, produtos feitos com nosso próprio café. "
Aqui também não vejo esse fenômeno como uma ironia, pois, sendo o Brasil um dos países com maior desigualdade do mundo — onde há muita riqueza e muita gente pobre —, o setor cafeeiro é protagonista dessa história, desenhada para ser como é e continuar como está. Ou seja, vejo isso como um projeto de sucesso.
Haja vista as histórias da própria universidade no Brasil, em especial o curso de Direito e sua relação com os Senhores do Café, atendendo os interesses da burguesia agroexportadora especialmente a cafeicultura paulista mantendo o mesmo status quo até os dias atuais.
Em 1894, a eleição de Prudente de Morais colocou "à frente do processo político cafeicultores paulistas e a elite econômica e política mineira, os quais instalaram um 'situacionismo permanente”
“As relações de produção em vigor abrangiam várias formas de exploração do trabalho. No campo, vínculos empregatícios contaminados pela prática do favor prendiam empregados a patrões por dívidas muitas vezes impossíveis de saldar e configuravam situações que beiravam à escravidão.”
Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação dos pobres
doi.org/10.1590/S0103-40141999000100017