Holanda Projeta Navios, Brasil Carrega Containers
4 lições da indústria naval holandesa que o Brasil deveria aprender
Por que países ricos fazem navios e países pobres carregam caixas
Olá!
Você já se perguntou por que a Holanda, um país menor que o estado de Santa Catarina, consegue projetar e construir alguns dos navios mais avançados do mundo, enquanto o Brasil, com toda sua costa e recursos, se limita a carregar containers com commodities?
A resposta revela uma das diferenças mais cruéis entre economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Países ricos como Holanda, Dinamarca e Noruega dominam o design, a engenharia e a tecnologia naval - criando produtos complexos que geram empregos qualificados e alta margem de lucro.
Enquanto isso, países como o Brasil se especializam no transporte de matérias-primas brutas, competindo apenas por volume e preço baixo. A diferença não está apenas nos lucros, mas no tipo de conhecimento, empregos e capacidades tecnológicas que cada estratégia desenvolve.
Um país que projeta navios cria ecossistemas de engenharia, inovação e manufatura avançada. Um país que apenas carrega commodities fica preso em atividades de baixo valor agregado.
Hoje vou mostrar exatamente como essa dinâmica funciona e por que ela explica muito sobre nossa posição no mundo.
Vamos analisar cada aspecto dessa equação.
A Holanda não nasceu fazendo navios complexos - ela se reinventou estrategicamente.
A trajetória naval holandesa não foi um acaso da natureza ou vantagem geográfica automática.
Na década de 1960, o país enfrentava o declínio de sua indústria naval tradicional devido à concorrência asiática em navios convencionais. A resposta foi brilhante: em vez de competir em volume, os holandeses se especializaram em navios altamente tecnológicos e de nicho. Desenvolveram expertise em dragagem, embarcações offshore para petróleo, navios científicos e navios especializados para energia eólica marítima. Empresas como Damen Shipyards e Royal IHC se tornaram líderes mundiais não pelo tamanho dos navios, mas pela sofisticação tecnológica. A estratégia funcionou porque criou barreiras de entrada baseadas em conhecimento, não em recursos naturais.
Hoje, quando o mundo precisa de um navio para instalar turbinas eólicas no mar ou de equipamentos para projetos portuários complexos, recorre à engenharia holandesa. É um mercado pequeno em volume, mas gigante em margem e valor.
Enquanto isso, o Brasil regrediu de uma economia diversificada para um mero exportador de commodities.
Nos anos 1980, o Brasil havia conquistado um nível intermediário de complexidade produtiva, exportando máquinas, autopeças e produtos químicos.
Nossa indústria naval chegou a construir plataformas petrolíferas e navios para a Petrobras. Mas desde os anos 1990, nossa economia regrediu sistematicamente. Voltamos a nos concentrar na produção e exportação de commodities como minério de ferro, soja e petróleo. O Brasil de hoje tem praticamente o mesmo nível de complexidade produtiva dos anos 1980 - ou seja, três décadas de estagnação tecnológica. Nossa indústria naval, que chegou a ter ambições globais, foi desmontada. Hoje importamos até mesmo navios básicos.
A consequência é dramática: enquanto a Suécia, com apenas 5% da nossa população, exporta 60% do que exportamos, isso acontece porque eles produzem bens complexos (Volvo, Scania, Ericsson) e nós produzimos commodities.
A diferença de produtividade e valor por habitante é abissal.
O segredo dos países desenvolvidos não são recursos naturais, mas redes produtivas complexas.
A Coreia do Sul é o exemplo mais impressionante de como se constrói uma indústria naval de classe mundial do zero.
Nos anos 1970, o governo coreano concedeu monopólio na produção de plataformas offshore à Hyundai e financiou tanto a construção dos navios quanto a própria empresa de navegação. Lucros só apareceram mais de uma década depois, mas o país perseverou. Hoje, a Coreia domina a construção de navios complexos - petroleiros gigantes, navios porta-containers de última geração e embarcações de GNL.
A China seguiu trajetória similar desde 2006, considerando o setor naval como estratégico e destinando altos volumes de subsídios. Começaram com navios simples e de menor qualidade, mas vêm se sofisticando rapidamente. O padrão é claro: países desenvolvidos criam redes produtivas densas, onde uma indústria naval competitiva requer fornecedores de aço especializado, sistemas eletrônicos avançados, motores de alta performance e centenas de outros componentes sofisticados.
Essas redes geram transbordamentos tecnológicos que beneficiam toda a economia.
A complexidade econômica determina se um país fica rico ou pobre - e o Brasil escolheu ser simples.
Produtos complexos como navios, aviões e automóveis exigem o que os economistas chamam de "capacidades produtivas" - conhecimentos específicos que se acumulam ao longo de décadas em empresas, universidades e redes de fornecedores.
Uma vez desenvolvidas, essas capacidades se tornam muito difíceis de replicar e geram vantagens competitivas duradouras. Por isso países que dominam bens complexos mantêm altos salários e padrões de vida. Em contraste, commodities podem ser produzidas por qualquer país com os recursos naturais adequados.
A competição é por volume e preço, comprimindo margens eternamente. Quando o Brasil escolhe ser um exportador de soja e minério, está optando por competir num mercado onde não há diferenciação possível.
A diferença é visível na pauta exportadora. Enquanto o Brasil em 2023 concentra suas exportações em commodities básicas - soja (13,6%), minério de ferro (7,85%) e petróleo (10,72%) -, a Holanda diversifica em produtos e serviços complexos, com destaque para o setor de negócios (22,9%) que inclui serviços de engenharia naval e projetos portuários.
Nossa soja compete com a soja argentina, americana e ucraniana. Nosso minério compete com o australiano e o chinês. Já um navio holandês especializado em energia eólica não tem 50 competidores diretos no mundo - talvez tenha três ou quatro.
A escassez de capacidades gera poder de precificação e margens robustas.
O custo de carregar containers: gerações perdidas
A diferença entre projetar navios e carregar containers vai muito além dos lucros imediatos.
Países que dominam indústrias complexas criam ecossistemas de inovação onde engenheiros, designers e tecnólogos desenvolvem soluções cada vez mais sofisticadas. Universidades se alinham com demandas industriais reais. Startups surgem para resolver problemas específicos. Trabalhadores desenvolvem habilidades valiosas globalmente.
O cluster marítimo holandês exemplifica perfeitamente esse fenômeno. Com faturamento de €95 bilhões em 2022 e crescimento constante desde 2012, envolve 22.870 empresas distribuídas estrategicamente pelo país, criando redes densas de conhecimento que se reforçam mutuamente.
Para dimensionar o impacto: esse cluster gera €50,4 bilhões em valor agregado direto, equivalente a 5,3% de todo o PIB holandês. Incluindo efeitos indiretos, chega a €72,4 bilhões - impressionantes 7,5% do PIB nacional. Emprega diretamente 305 mil pessoas especializadas (74% em tempo integral, concentradas entre 26-55 anos) e, contando efeitos multiplicadores, impacta 575 mil trabalhadores - 5,7% do emprego total do país.
Mais relevante ainda: esse impacto vem crescendo aceleradamente, saltando de 6,2% do PIB em 2020 para 7,5% em 2022. É o resultado de décadas de investimento estratégico em capacidades complexas.
Todos esses dados você encontra no relatório “Blue Economy Matirime Monitor 2023”.
Já países especializados em commodities ficam presos em atividades que geram pouco aprendizado tecnológico.
Um porto que carrega soja precisa de estivadores e operadores de guindastes - empregos importantes, mas que não transferem conhecimento para outros setores.
Uma fábrica de navios precisa de engenheiros navais, especialistas em materiais, projetistas de sistemas complexos e técnicos altamente qualificados. Esses profissionais levam conhecimento para automóveis, aviação, energia e outras indústrias.
A consequência de longo prazo é que países como Brasil formam gerações inteiras de trabalhadores em setores de baixa qualificação, enquanto países como Holanda desenvolvem gerações de inovadores e criadores de tecnologia.
Curiosamente, enquanto o Brasil na década de 1980 tinha um parque industrial mais diversificado que a Coreia do Sul, hoje nos encontramos exportando principalmente commodities enquanto a Coreia produz alguns dos bens mais sofisticados do mundo.
Este paradoxo de como uma economia com enormes vantagens iniciais perdeu dinamismo enquanto outras avançaram rapidamente desafia as explicações econômicas convencionais sobre vantagens comparativas e revela falhas estruturais profundas em nosso modelo de desenvolvimento que vão muito além das políticas de curto prazo.
Brasil ainda pode mudar essa trajetória, mas precisa de estratégia, não só recursos.
A boa notícia é que a posição de um país na economia global não é permanente.
A Coreia era mais pobre que o Brasil nos anos 1960.
A China era considerada retardatária na indústria naval nos anos 2000.
Ambos decidiram investir estrategicamente em capacidades complexas e sustentaram esses investimentos por décadas, mesmo diante de prejuízos iniciais.
O Brasil tem recursos, mercado interno, universidades e tradição industrial para fazer essa transição. Mas precisa de uma estratégia nacional de longo prazo que priorize o desenvolvimento de indústrias complexas sobre a extração de commodities. Isso significa investir em educação técnica, pesquisa aplicada, financiamento de longo prazo para indústrias nascentes e políticas que incentivem a sofisticação produtiva.
Países como Dinamarca produzem os maiores navios do mundo. A Suécia produz os caminhões Volvo e Scania que rodam nas estradas brasileiras. Não há nada de natural nessa liderança - é resultado de décadas de investimento consciente em capacidades produtivas.
O Brasil pode escolher fazer o mesmo, ou continuar sendo o país que carrega os produtos que outros inventaram.
Um grande abraço!
Paulo Gala
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Parabéns pela análise, Paulo! Escrevi algo neste mesmo sentido: https://rodriggomorais.substack.com/p/brasil-colonia-dividir-para-saquear